sexta-feira, 1 de maio de 2009

O ópio ideológico

A trajetória intelectual de Sartre e sua biografia são, sem dúvida, uma fonte preciosa para quem tenta compreender os paradoxos e confusões que marcaram o conturbado século 20. Na vida e na obra do pensador francês, teoria e ideologia, tendo saído de uma só cabeça, parecem pertencer a pelo menos dois homens diferentes. Sua trajetória como intelectual público e engajado começa com obras que defendem de forma intransigente a liberdade do homem; e termina, paradoxalmente, com a defesa de regimes autoritários como os de Stalin e Mao Tsé Tung. Chegou a afirmar, após uma viagem à URSS stalinista, que naquele País a liberdade de crítica era total; e, na famosa polêmica travada com Albert Camus, justificou os campos de concentração soviéticos em nome de uma sociedade sem classes.

Seu maior adversário intelectual, Raymond Aron, nascido no mesmo ano de 1905, pode ser visto como a antítese de quase tudo o que Sartre representou. Ambos se formaram na célebre Escola Normal Superior de Paris durante os anos 20 e foram completar os estudos filosóficos na Alemanha, nos anos 30. Depois, romperam as relações: não havia outro destino para cabeças tão divergentes. Sartre representava a revolta, a insatisfação e a juventude – causas “poéticas” que o tornaram um ícone dos movimentos contestatórios. Como bem escreveu Roberto Pompeu de Toledo, mesmo quem não lia Sartre estava impregnado por seu pensamento. Aron, por outro lado, sempre foi um reformista e um crítico profundo e embasado de todas as ideologias totalitárias. Sua obra mais conhecida, L’Opium des intellectuels (O Ópio dos Intelectuais), foi um verdadeiro bombardeio teórico contra os pensadores pró-soviéticos. Aron foi um defensor ferrenho da doutrina liberal, da democracia, da cultura ocidental, da Aliança Atlântica (com os EUA) e do livre-mercado – logicamente, tais posições lhe renderam bem mais detratores do que partidários.

Em artigo recente sobre o centenário de Sartre e Aron, publicado no jornal espanhol El País, o escritor peruano Mario Vargas Llosa lançou uma questão intrigante: como alguém que defendeu tantas causas equivocadas e tantas ideologias perversas pode ter sido considerado por tantos a “consciência moral” de toda uma época? E como o outro - Aron -, que defendeu tenaz e coerentemente a causa da liberdade, pode ter sido tão vilipendiado? A imprensa esquerdista da França, sectária como poucas, cunhou uma frase que pode ser a solução do enigma proposto por Llosa: .Mais vale estar equivocado com Sartre do que ter razão com Aron.. Por se colocar ao lado dos argelinos na guerra pela independ ência, Aron foi hostilizado também pela direita.

Para tentar compreender o que transformou um filósofo de profunda inclinação libertária em um pensador doutrinário, podemos analisar um aspecto que perpassa fortemente as suas obras, principalmente as primeiras: um pessimismo com forte teor niilista. Sartre, por exemplo, em um interessante ensaio sobre o tema hegeliano do Senhor e do Escravo, escreve: “Quando vejo o outro, tento submetê-lo, objetivá-lo, convertê-lo em um ser-em-si para obrigá-lo a aceitar o meu senhorio sobre a realidade. Mas o outro é também um ser-para-si e se opõe a minha pretensão, criando uma luta que faz com que as relações humanas terminem em fracasso, porque buscam algo impossível”. A crença de que o inferno são os outros e de que a vida social é impraticável pode ter levado Sartre a uma beco sem saída filosófico - do qual só pôde escapar através de uma fé cega em ideologias historicistas que prometiam a salvação e a redenção de todos os homens. E o que é ideologia? “É uma tripla isenção - dirá outro pensador francês, Jean-François Revel -, isenção intelectual, isenção da prática e isenção moral”.


Raymond Aron seguiu toda a vida um caminho mais crítico: foi um dos poucos intelectuais do seu tempo que conseguiu enxergar as ideologias e os sistemas filosóficos apenas como elaborações teóricas que só são perfeitas em si mesmas, mas que, em contato com o Real, perdem sua aparente infalibilidade – a realidade parece querer sempre escapar às nossas idéias: “Todo regime conhecido é torpe e culpável se o comparamos com um ideal abstrato de igualdade ou liberdade”. Allan Bloom, pouco tempo após a morte de Aron, escreveu: “Esse foi o homem que vinha tendo razão durante 50 anos. Teve razão nas alternativas políticas que tínhamos à nossa frente; teve razão no que disse sobre Hitler e Stalin; e teve razão quando disse que nossos regimes ocidentais, com todos os seus defeitos, eram a única esperança da humanidade”.

Sartre e Aron viveram e pensaram a mesma época e cada um buscou afirmar a própria idéia de um mundo mais justo diante das circunstâncias. A grande diferença entre eles é que Aron manteve sempre a razão alerta e o senso crítico aguçado; Sartre, sempre festejado pelos rebeldes com e sem causa, padeceu de embriaguez ideológica e acabou por submeter a razão a modismos intelectuais e doutrinários. Sua vida, como ele bem o disse, pode não ter passado de uma paixão inútil.

A compreensão da razão do nascer, viver e morrer – de existirmos.

Quando da primeira respiração choramos; à infância somos castigados por tirarmos notas baixas nas escolas de boletins fajutos; ao saber que chegamos à idade adulta – não necessariamente amadurecidos, pagamos impostos aviltantes, elegemos políticos corruptos para nos dirigir e a Nação, acreditamos em demônios – que são os outros. E, por fim, nos preparamos para morrer dignamente. Imaginem! Velhos gulosos, arengueiros, metidos a sábios do que nunca aprenderam, esperando livrar-se, ao menos, do sepultamento em covas rasas e indigentes, ou pior, tarjados de um “aqui jaz” mais um deprimido barnabé aposentado com um salário mínimo – eis o fim do poço.

E o velho mestre Sartre ainda levantou a bola filosófica do existencialismo, do sentido e fingido, que, segundo Gide, são dois sentimentos que já não se confundem, mas quase se confundem. Desse modo, possivelmente temos de escolher, tal Mathieu comentou: não ser nada ou fingir o que se é.
Se para a crendice católica e seguidores de linhas diversas e concernentes, testamenteiros da criação do mundo, Deus criou o homem à sua Imagem e Semelhança; tirou-lhe uma costela e da mesma fez a mulher, sugerindo-lhes a procriação direcionada para povoar a Terra; ditou os Dez Mandamentos nas tábuas de Moisés para serem aprendidos e cumpridos pela humanidade. E depois mandou Jesus Cristo para dar exemplo de sacrifício aos seres humanos, ensinando-lhes obediência ao Pai supremo, a paz entre os povos, a negação às guerras e aos pecados capitais...

Para outras linhas religiosas somente Deus existe. Ainda esperam pela vinda do Salvador – quando serão desvendados o início, o meio e talvez o fim da Terra, os fingimentos dos homens e mulheres, suas bondades e maldades e a morte.
No cientificismo, dentre as vias da física clássica e moderna – quântica, ótica, molecular, até a muscular e outros bichos, o filão de ouro ficou por conta da física de Einstein, para quem o tempo é uma variável, dependendo de quem observa e marca tempos diferentes para a mesma coisa – chose de loque. Os cientistas (nem sempre loucos) apostam no Big Bang como a razão do feitio do Universo – a explosão de uma contração de massas e vai por aí.

Após tantas confusões, prefiro acreditar que Deus mandou para nossa Terra uma porção de naves cheias de homenzinhos amarelinhos extraterrestres, de cabelos em pé e olhinhos rasgados, que escreviam de trás pra frente em desenhos e hieróglifos. Noutras iguais, balaios de mulheres, todas cobertas de turbantes e burkas. E juntos, danaram-se a transar e fazer filhos como coelhos. Tirante a miscigenação, inventaram o papel, a roda, as armas, o rádio de pilha, um celular deste tamanhinho e se matam como bombas humanas por amor aos seus deuses ou imperadores ou governantes tirânicos.
E ainda se diz que o existencialismo é um humanismo.

quinta-feira, 30 de abril de 2009

É preciso inventar novas armas

Desde seus primórdios, o capitalismo manteve na miséria dois terços da população mundial. Mas, com a automatização das fábricas e o advento das tendências virtualizantes, e com o atual deslocamento do foco para as finanças, os serviços, o marketing e o consumo, essa porcentagem de “excluídos” está aumentando perigosamente. São poucos aqueles que podem se submeter à vertigem da flexibilidade e da reciclagem constante, a fim de satisfazer as demandas da competitividade, colocando no mercado de trabalho os atributos igualmente “virtuais”, etéreos e imateriais que hoje são solicitados: criatividade, inteligência, conhecimento, habilidades comunicativas e informação.

É irreversível a compatibilidade entre homens e computadores, isto é, a mutua impregnação pela lógica digital através do convívio com os aparelhos e com as metáforas que os atravessam. Isso já está ocorrendo no presente. Mas se trata de uma construção histórica e, como tal, pode mudar. Ou seja, não se trata de um fato “natural”, de uma “conseqüência inevitável do progresso”, mas de uma construção que responde a um projeto sócio-político e econômico determinado. Eu, particularmente, sinto um desconforto profundo com relação ao papel que o mercado assumiu em nossas vidas, e concordo com Gilles Deleuze quando ele diz que a nossa sociedade sofreu uma mutação nas últimas décadas, e que não cabe temer ou esperar: é preciso inventar novas armas.

A Internet está gerando novas dinâmicas na afetividade e na sexualidade, já que cada vez mais pessoas se relacionam virtualmente, e acredito que é possível estabelecer verdadeiros laços afetivos, ou de desejo, pela Internet, pois a sexualidade humana é múltipla, e suas manifestações variam historicamente, mas o fenômeno é inquietante. Eu não considero que o cyberespaço seja um universo separado do mundo real. Pelo contrário, trata-se de um fenômeno perfeitamente “real”, que faz parte de nosso mundo e está afetando fortemente nossas subjetividades, nossas cosmovisões e nossos modos de ser. As práticas desenvolvidas nos ambientes digitais estão influenciando as condutas sexuais e o imaginário erótico, mas este é um fenômeno muito recente, cuja popularização começou há menos de uma década.

O fato de a reprodução não ser o único objetivo do sexo ficou evidente pelo menos desde a invenção da pílula anticoncepcional. É verdade que as técnicas de clonagem vão mais fundo nesse sentido, pois tornam desnecessária a participação masculina na concepção de um novo ser. Isso é inquietante. As condutas sexuais e o imaginário erótico estão atravessando fortes transformações, com certeza afetados pelas descobertas e invenções tecnocientíficas, tanto no campo teleinformático como no das ciências da vida, mas também em virtude das mudanças sociais e políticas que estamos vivenciando.

Parece sobrar cada vez menos espaço para a reflexão moral num cenário dominado pela ciência e pela tecnologia.
Os avanços tecnocientíficos são tantos e tão velozes que as nossas ferramentas para compreendê-los e avaliá-los costumam ser insuficientes, pois também elas estão submetidas ao turbilhão da obsolescência e ao imperativo da reciclagem constante. Acredito que aí resida a origem do despertar da bioética e do biodireito nos últimos anos em todo o planeta, com os debates e questionamentos que decorrem da proliferação de fenômenos inquietantes surgidos dos laboratórios. As propostas de estabelecer proibições e estipular o cumprimento de códigos internacionais, porém, não parecem adequadas à dinâmica da nova tecnociência aliada ao mercado global, e, acredito, a eficácia dessas iniciativas será escassa.

Seria possível fazer um download da criatividade? No fim das contas, este resíduo não redutível a “zeros” e “uns” não seria o que existe de mais essencialmente humano?
A arte, assim como a ciência e a filosofia, tem um papel fundamental: ela deve ousar. Rasgar o véu do senso comum e das verdades estabelecidas para ir além do que já se sabe, atrever-se a pintar e a pensar o que ainda não foi pensado, ou pintado. A capacidade de criar é um patrimônio valiosíssimo do gênero humano, inclusive daqueles integrantes da espécie que começam a se pensar como pós-orgânicos e como compatíveis com os aparelhos e com a lógica digital. Eu confio plenamente nessa capacidade, admiro essa potência da vida e procuro estar sempre atenta às suas reverberações.

Apesar da minha visão crítica com relação a todos os processos emancipadores , vejo forças positivas no desabamento de velhas formas de dominação e outras cristalizações de poder, que estão se desfazendo. Além disso, confio muito na potência criadora dos homens, inclusive dos “pós-orgânicos”, e acredito que os momentos de transição como este são férteis, pois permitem enxergar as inovações sobre o pano de fundo daquilo que vai ficando para trás. Discutir essas questões já é valioso, pois só entendendo aquilo em que estamos nos tornando poderemos definir aquilo em que queremos nos tornar.

É tudo mentira!

orge Luis Borges edificou uma obra repleta de pseudotraduções, falsas referências, citações a autores e obras inexistentes. E, considerando esse labirinto de paredes densas e intermináveis, é espantoso pensar que talvez um de seus escritos mais conhecidos seja exatamente um embuste, o terrível poemeto Instantes, cujas estrofes parecem fincadas à figura do escritor argentino. Quase três décadas de estudos e depoimentos lhe negando a autoria não foram suficientes, Borges continua sendo equivocadamente acusado desse que se tornou o mais célebre dos incontáveis textos que circulam na internet com assinaturas errôneas ou como apócrifos.

A lista não pára de crescer, tampouco cai o altíssimo nível das vítimas escolhidas para “assinar” essas pérolas (geralmente crônicas ou mensagens de fazer inveja ao mais piegas dos best-sellers de auto-ajuda). Nela encontramos Shakespeare, Maiakovski, Brecht, Neruda, Borges, García Márquez; entre os brasileiros, nomes como Millôr Fernandes, João Ubaldo Ribeiro, Drummond, Quintana e os campeões Arnaldo Jabor e Luís Fernando Veríssimo. Se você, leitor da Continente, nunca recebeu um e-mail ou cartão com um desses textos falsos, sinta-se um privilegiado. Ou, então, quem sabe, não percebeu o trote e até o repassou adiante.

E se engana quem subestima tais ludíbrios, crendo que apenas pessoas de pouca informação caem nas pegadinhas. Professores já empregaram o falso Borges em suas aulas, políticos o citaram em parlamentos, poetas sem conta o usaram como epígrafe em seus livros. Basta dizer, ainda, que Roberto Campos repercutiu os versos em um artigo e o escritor Moacyr Scliar jamais negou parte da responsabilidade pela popularização dos mesmos, já que os trouxe de Buenos Aires, reproduzindo-os no jornal Zero Hora. A própria Maria Kodama, viúva do poeta, contista e crítico argentino, precisou ir à Justiça para negar aquela autoria e se precaver contra ações dos herdeiros do verdadeiro autor.

O assunto revela ainda outras maléficas facetas, como a de textos que são plagiados. Desde as escolas até as universidades, cada vez mais estudantes têm surrupiado textos na rede. No caso das pós-graduações, houve aqueles que não só copiaram teses como também as recolocaram na internet, agora com novas assinaturas. Como muitos desses trabalhos vão parar em revistas científicas, imaginem a surpresa de quem encontra partes de sua pesquisa publicadas com falsa autoria? Esse problema é tão sério que as coordenações de cursos de todo o mundo começaram a adotar programas que buscam excertos coincidentes entre os textos de seus alunos e materiais encontrados na web.

Por tudo isso, será que não chegou o momento de dar mais atenção a essas fraudes literárias? Se os diferentes tipos de fake findam por ludibriar tanto adolescentes iletrados como jornalistas e organizadores de antologias, não existe aí um campo de trabalho novo e profícuo para pesquisadores? Quantas dessas adulterações não devem ainda circular de forma despercebida, pois tanto o falso autor quanto o verdadeiro não chamam a mesma atenção como aqueles que foram aqui citados?

Por enquanto, o que resta é pedir zelo para quem tem por hábito utilizar sua lista de contatos para enviar e-mails com textos, correntes, santinhos etc. O que, em si, já é uma caceteação.

Boataria na web

A mensagem urge na tela do computador: “A CNN já fez o alerta. Por favor, repasse esta mensagem para todos que você conhece”. O assunto não importa: um virulento programa que destrói seu computador, bebidas drogadas por traficantes de órgãos, uma catástrofe que não pode mais ser evitada, vítimas de guerra que precisam de ajuda, ingredientes cancerígenos no seu enlatado predileto, experiências genéticas em animais fofinhos, uma conspiração política, ou próximo atentado terrorista.

Ao longo dos séculos, a imaginação humana tem gerado toda a sorte de boatos, fantasiosos ou não. Anos atrás, através do boca-a-boca, propagavam histórias como a loura do Escort que caçava pretendentes desavisados madrugada adentro, da popular tela cujo pintor fez um acordo com o diabo. Antes ainda, havia o papa-figo solto pelo Recife e a moça emparedada na rua Nova; os túneis secretos de Olinda; crocodilos nos esgotos de Nova York; cadáveres no reservatório d’água do Rio de Janeiro. E quanto àquele vinil que, girado ao contrário, amplifica conjurações satânicas? O ingrediente secreto da Coca-Cola? Ou a receita dos hambúrgeres do McDonald’s? O que há do lado de dentro da boneca Barbie? Paul McCartney realmente está morto? Lendas infinitas, que renderiam um belo retrato dos desejos, medos e delírios do homem contemporâneo.

Eis que hoje a boataria é digital. Basicamente, elas podem ser divididas entre trumors e hoaxes, dois novos verbetes em nosso linguajar contemporâneo. Trumor (true + rumor) é uma notícia verdadeira ou que se torna verdade após sua circulação (uma mentira repetida mil vezes se torna verdade). Já o hoax (literalmente, “embuste”, com derivação da expressão hocus pocus) tem alto poder de convencimento e objetiva iludir o maior número de pessoas com informações falsas. Entre eles, o que há em comum é a forma epidêmica com que são propagados pela rede mundial e os elementos que caracterizam os boatos – de acordo com o dicionário, “notícia de fonte desconhecida, muitas vezes infundada, que se divulga entre o público”. Ou seja, o bom e velho zunzunzum.

O fato é que, na internet, os rumores adquiriram alcance epidêmico. Como no caso da notícia veiculada pelo canal pago Globonews, de que um avião da empresa aérea Pantanal teria caído na Zona Norte de São Paulo. De fato, as imagens mostravam muita fumaça, mas nada de avião. Em pouco tempo, a verdade surge e ridiculariza nosso glorioso e mal-apurado jornalismo control C + control V (copie e cole): era nada mais do que um incêndio numa fábrica de colchões. Tarde demais: a “barriga” já tinha sido propagada pelos portais UOL, Terra, iG, e os jornais eletrônicos por eles hospedados, como a Folha Online e o Estadão.

Em 1938, a conhecida narração de Orson Welles para o livro Guerra dos mundos, de H.G. Wells, resultou em pânico generalizado em centenas de milhares de norte-americanos, que acreditaram estar sofrendo um real ataque alienígena. Caso emblemático da importância dos mass media na disseminação de um boato.

Longevo pesquisador do comportamento humano, o psicanalista José Ângelo Gaiarsa enxerga o pânico e histeria gerados pelo episódio pelo viés psicanalítico. “Existe uma ansiedade coletiva negada, pois a vida é muito incerta, e mesmo assim tem gente que se comporta como tudo estivesse bem. Mas o fato é que estamos todos assustados. Temos muitos medos escondidos, e isso é um pavio curto para qualquer faísca fazer explodir tudo”, expõe o escritor, que já publicou uma extensa análise de um fenômeno próximo ao boato: Tratado geral sobre a fofoca (Summus Editorial).

Música e loucura

Os compositores, em geral, concordam quanto à presença, em seus processos mentais, de um elemento irredutível – a inspiração – que, junto a todo um complicado trabalho de construção racional, constitui a essência do processo criativo.
A inspiração resulta, na prática, naquilo que poderíamos bem chamar de “coisa dada” ao compositor, em contra-distinção a tudo aquilo que ele irá acrescentar para obter a peça musical acabada. A inspiração fornece uma espécie de “semente” – um motivo musical, um tema –, em que o compositor baseia todo o restante de seu trabalho.

O fato importante a destacar, aqui, é que essa “coisa dada” não chega ao compositor pela via racional . É algo mais ligado ao instinto, aos sentimentos, que brotam das entranhas da alma – ali onde residem as grandes paixões e onde o gênio faz a sua morada. Não sendo racionais, a melodia de uma peça e sua inesperada seqüência harmônica são, em última análise, inexplicáveis.

Quando J. S. Bach reduziu o papel da inspiração na arte da composição ao da perspiração, na verdade o fez enunciando uma das mais espetaculares mentiras jamais ditas por um cristão temente a Deus: “– Trabalhe tanto quanto eu, e você comporá tão bem quanto eu”... Mozart foi mais sincero: “ – Quando eu sou completamente eu mesmo, inteiramente a sós, e de bom humor (...), é nesses momentos que minhas idéias fluem com mais facilidade e abundância. De onde elas vêm, ou como elas vêm, eu não sei; tampouco posso forçar que elas cheguem”.

Nenhum outro período histórico ilustra tão bem o milagre da inspiração, não só na música, mas em todas as artes, quanto o Romantismo, na transição do século 18 para o 19. Esse movimento notável de idéias, entretanto, começa a surgir na Inglaterra já em meados do século 17, inicialmente como mero termo para indicar o fabuloso, o extravagante, o fantástico e o irreal. Daí por diante, “romântico” passa cada vez mais a indicar o renascimento do instinto e da emoção, que o racionalismo do Iluminismo não havia conseguido abafar inteiramente. O ethos do homem romântico pode ser assim resumido: sentimento e emoção que se afirmam acima da razão, conflito interior, dilaceração de um ego que nunca se sente satisfeito, busca interminável de “algo mais” que lhe escapa continuamente, impressionabilidade permanente, inquietude, saudade irremediável e ânsia de retorno a uma felicidade utópica. Além disso, o Romantismo – principalmente em música – é triste. A música dos compositores românticos, de Schubert a Berlioz, passando por Beethoven, Chopin, Liszt, Schumann, Weber, Brahms, Wagner, Mendelssohn e os compositores das chamadas escolas nacionais (onde não podemos deixar de lembrar a figura extraordinária de Tchaikovsky), pois bem, essa música exprime, acima de tudo, a paixão dolorosa, a fantasia (em contraste com a “fria razão”), não raro também o desespero.
Esse furor poeticus marca quase toda a expressão musical do Romantismo. Essa foi uma era assombrada pela identificação do lunático ao amante, ao poeta, que terminou por produzir uma estética capaz de abrigar, enquanto disciplina filosófica autônoma, elementos irracionais e sobrenaturais. O Romantismo considerava o gênio como algo afim com a loucura.

No seu belíssimo “Quarteto em Dó Menor, Opus 60”, com piano, Brahms confidencia a seu editor: “– Imagine um homem que tudo perdeu e que decide se matar...”. Infeliz com seu amor impossível por Clara Schumann, Brahms manda as instruções para a publicação do Quarteto: “Na capa você deve colocar a figura de um homem com um paletó azul, colete amarelo... e uma pistola apontada para a cabeça. Agora sim, você vai poder fazer idéia da música! Para essa ilustração lhe enviarei minha fotografia...”. Compreende-se: essa era uma época em que as pessoas liam o Werther de Goethe e, inebriadas com o espírito do Romantismo, decidiam tirar a própria vida.

Felizmente, o “suicídio” de Brahms não passou das notas do seu Quarteto – uma das mais belas páginas da literatura musical de câmara de todos os tempos.

Teatro e loucura

Embora nascido do êxtase e do entusiasmo suscitados por primitivos rituais de vida e de morte, é com a ascensão do logos, no apogeu da Grécia clássica, que o teatro vai ganhar autonomia, instituindo-se como uma forma consciente de expressão artística. Desde então, credenciado sobretudo como uma arte da palavra, o teatro ocidental tem habitado prioritariamente os domínios da racionalidade. No entanto, pela essencialidade de seu caráter ritualístico, o fenômeno teatral jamais se desvencilhou de suas forças ancestrais, nem sempre submissas à lógica e ao intelecto. Ou seja, de algum modo, a arte de representar parece trazer em sua própria natureza a instigante tensão entre a razão e o seu outro – algo desconhecido, muitas vezes rotulado como loucura.

Todavia, a despeito de seus componentes irracionais, o teatro raramente concedeu o privilégio da representação aos indivíduos que na vida real são tidos como loucos. Isso não impediu que a loucura se tornasse uma temática teatral recorrente, embora sendo quase sempre representada, de forma mais ou menos caricatural, por pessoas consideradas normais. Há inúmeros loucos famosos na dramaturgia ocidental. Porém, a rigor, esses personagens que despertam tanta curiosidade das platéias não guardam muitas semelhanças com os seres humanos depositados em hospícios, ignorados pela maioria, controlados por grades ou por drogas, quase incomunicáveis.

De fato, a representação da loucura que vitima os pacientes psiquiátricos, a insanidade passível de diagnóstico científico, desglamurizada pelo habitual isolamento do doente, tem significado um grande desafio para o teatro – não somente para os atores, mas também para os diretores, e sobretudo para os dramaturgos. Estigmatizada no imaginário ocidental como um estado irreversível, a doença mental grave parece negar ao drama o seu componente mais importante: a ação desenvolvida por motivações subjetivas. Talvez por isso, através dos séculos, percebe-se que ao teatro, tanto à tragédia como à comédia, interessou menos a enfermidade psíquica propriamente dita, e, sim, o tornar-se louco, o fingir-se de louco, ou ainda, especialmente, o manter-se nos limiares da loucura.

Ora aparecendo como castigo por atos maléficos, ora como resultado da maldade alheia, ou ainda utilizada como artifício para obtenção de vantagens ou como subterfúgio para escapar de apuros, as formas de loucura que rendem melhor resultado dramático não necessariamente obedecem às descrições dos manuais de psicopatologia. Assiste-se com enorme assombro, por exemplo, à decadência mental de uma Lady Macbeth; mas que interesse teria essa personagem, se desde o início da peça ela já se apresentasse em agudo quadro de delírios e alucinações? Em Hamlet, por sua vez, em mais um lance de grande força cênica, o angustiado príncipe da Dinamarca, com seus teatrais métodos de vingança, deixa-se passar por louco, levando ao suicídio sua amada Ofélia.

O cômico, também, desde da antiguidade clássica, sem maiores compromissos com a representação de uma loucura verídica, produziu uma vasta galeria de hilariantes quase-loucos – excêntricos, lunáticos, maníacos e dementes. Esses tipos, criados e recriados por diversos autores e atores, ganhariam maior profundidade com a genialidade de Molière. Se Orgon fosse efetivamente louco, não haveria “O Tartufo”; mas se ele fosse um sujeito equilibrado, também não. Do mesmo modo, quase todos os demais tragicômicos protagonistas das peças de Molière parecem se encontrar a um passo da loucura, mas se mantêm obstinadamente no mundo das pessoas sãs.

O teatro voltado para o riso também engendrou a enigmática figura do bobo, o falso-louco por excelência. Bufão, pícaro, gracioso ou clown, a designação pode mudar, mas sua essência permanece a mesma: por ser marginalizado, como os loucos, ele tem a liberdade de dizer o que bem entende, sendo ouvido ou ignorado conforme os interesses de cada situação.

A loucura como ela é – Algumas vezes, porém, o teatro pôde estabelecer um contato mais aproximado com a realidade da doença mental, por intermédio do sofrimento particular de alguns criadores. No Brasil, entre outros casos, destaca-se o autor gaúcho José Joaquim de Campos Leão, conhecido como Qorpo-Santo (1829-83), que chegou a ser formalmente declarado incapaz, por manifestar distúrbios mentais. Algumas de suas peças, redescobertas a partir da década de 1960, como Eu Sou Vida; Eu Não Sou Morte ou Mateus e Mateusa, viriam a ser comparadas a certos experimentos do teatro moderno, em especial ao chamado teatro do absurdo – rótulo associado ao trabalho de autores como Samuel Beckett, Eugène Ionesco, Edward Albee e o atual ganhador do Prêmio Nobel de Literatura, Harold Pinter, todos interessados em interpelar, por meio da linguagem, os limites da comunicação humana.

No Recife, a Cia. Teatro de Seraphim, cujo próprio nome foi inspirado pelos escritos teóricos de Artaud, tem se detido com especial atenção sobre a problemática da loucura.
Sempre sob a direção do professor Antônio Cadengue, em 1996, esse grupo levou aos palcos uma versão de “O Alienista”, de Machado de Assis. Nos dois anos seguintes, participou ativamente do Ciclo Iluminuras, importante experiência de aproximação entre o doente mental e a sociedade por meio da arte – iniciativa liderada pelo cantor Gonzaga Leal, quando atuava como terapeuta no Hospital Ulisses Pernambucano. Uma das peças encenadas pela Seraphim, nesse projeto, foi “Lima Barreto ao Terceiro Dia”, de Luís Alberto de Abreu, texto que reconstrói poeticamente o convívio do autor de “Triste Fim de Policarpo Quaresma” com os internos do manicômio a que foi recolhido por ser alcoólatra e por se encontrar em profundo estado de depressão.

Apesar de não ter corrido o risco de ser internado em hospícios, como ocorreu com Lima Barreto, embora também hostilizado por setores mais conservadores da sociedade, sendo freqüentemente tachado de pornográfico e de pervertido, caberia a Nelson Rodrigues produzir uma das melhores ilustrações das dificuldades de se representar teatralmente, em sua devida complexidade, as dores da enfermidade psíquica. Captando com precisão a atávica marginalidade do doente mental, em “Álbum de Família”, Nelson concebe o personagem Nonô, “o possesso”, um jovem atormentado que perambula nu ao redor da casa, causando vergonha aos seus familiares. Nonô não tem voz, não possui falas, nem sequer precisa aparecer em cena, mas a sua presença – que é ao mesmo tempo a sua ausência – é lembrada durante toda a narrativa, por exclusão ou por negação. De certa maneira, esse recurso encontrado pelo maior dramaturgo brasileiro parece sintetizar metaforicamente a maior contribuição que o teatro talvez possa legar à questão da doença mental: a evidência, ou a confirmação, de que a verdadeira loucura é, em última instância, um doloroso impedimento à representação.

Arte e loucura

Arte é criação. De onde o artista retira sua capacidade criadora não constitui questão para a psicanálise. Se o artista é, porventura, neurótico ou louco, então poderíamos considerar, em cada caso, que sua existência, como a de qualquer um, só é vista por ele de um ponto, mas é olhada de toda parte.

A formulação desse tema proposto poderia organizar a reflexão sobre o assunto, considerando o ato criativo, a criação artística – seja poética, pictórica, escultórica, musical ou qualquer outra –, sob o aspecto da moderação do ímpeto; ou, então, da contenção de uma loucura qualquer a ser mantida sob restrição.

Bem, descarto, de saída, o disparate de sugerir que haja, no ato criador, para usar o termo proposto, a loucura, ou que o criador seja louco. Afirmar tal coisa é ignorar a arte e desconhecer o que seja a loucura. A loucura não é recomendada para ninguém, nem mesmo para os artistas; além disso, sabemos que não é louco quem quer. Ao contrário, a arte pode até ser sugerida para os loucos, o que não significa afirmar poder ser por eles apreciada, pelo menos da perspectiva de um olhar para aquém e além do olho.

Uma outra coisa a ser, de imediato, descartada é que se possa fazer análise do artista por meio de sua criação. Se um psicanalista, atento à sua função – é função, nada mais, restrita à escuta de quem, porventura, lhe solicite ouvir o que tem a dizer –, conseguir, pelo menos, aprender, com seus analisantes, a arte da onirocrítica, poderá, quem sabe?, tornar-se também um crítico, um crítico de arte, mas não a partir de sua função de psicanalista. Não há análise possível de um autor a partir de sua obra; nem o autor a solicita, nem a obra diz do autor, mas, sim, de sua criação. Seria como analisar os pais pela fala dos filhos, mantendo os pais alheios ao que sobre eles está sendo dito por outros.

A inteligência e a razão impedem-nos, claro, de que nos quedemos em contemplação abobada, mas devem estimular-nos à perplexidade e à surpresa, comovendo-nos diante do que nos afeta, em face, por exemplo, da eloqüência de certos objetos da arte. Só isso nos faz reconhecer o fato de que haja nas criações da arte enigmas que nos são propostos, não necessariamente resolvidos pela nossa compreensão. Nesses casos, os objetos da arte nos propõem indagações; mas também podem conter respostas a indagações sequer formuladas.
Nós, analistas, lidamos com ambas: indagações e não-indagações. As indagações receberam o epíteto de neuroses; as não-indagações, o de psicoses. São termos pertencentes ainda à semântica do discurso médico originário, e, talvez até mesmo por falta de arte, de criação, nós ainda continuamos a usá-los impropriamente.

Se a arte de um determinado artista representa para ele a tentativa de formular – a exemplo dos “neuróticos” – alguma grande indagação que lhe foi imposta, à sua revelia, ou se se trata de lidar, por meio de grande tormento persecutório – no caso “psicótico” –, com respostas que não lhe são próprias, como respostas a alguma indagação que não lhe ocorreu, só o próprio artista poderá expressá-las e significá-las – tais quais lhe passam – com sua arte.

De modo geral, diante de uma grande obra de arte, cada um diz algo diferente do outro e nenhum diz nada que resolva o problema para o admirador despretensioso. Então, pode ser que o que nos captura tão poderosamente seja o “desejo” do artista, até onde ele conseguiu expressá-lo e transmiti-lo em sua obra e que de alguma forma encontra alguma correspondência, mesmo aparente, com nosso próprio desejo. O que no artista produziu esse ímpeto criativo pode corresponder, significantemente, ao nosso próprio desejo articulado em outro lugar.

Literatura e loucura

Loucura sempre fascinou escritores e poetas. Não é à toa. O louco, antes de ser um caso para psiquiatras, representa no imaginário universal o homem em todas as suas possibilidades. É um arquétipo (e não um estereótipo, por favor) do exagero e das escolhas e suas conseqüências. Por isso mesmo são infinitos os textos que usam o louco, em suas mais diversas manifestações, como personagem. Donde se pode deduzir que, em literatura, o superego atrapalha um pouco.

É interessante perceber que, ao contrário das artes plásticas, do teatro e da música, a literatura não permite que o louco seja ativo na criação. Claro que há exceções, mas elas não passam disso. Jamais um escritor diagnosticado como louco será canônico, ainda que a academia adore se debruçar, vez ou outra, sobre os delírios do dramaturgo gaúcho e louco de pedra Qorpo Santo.

A marginalidade em que vivem na literatura os escritores doidos varridos é motivo de crítica para Walter Benjamin: “A existência deste tipo de obras tem algo de surpreendente. Estamos habituados, apesar de tudo, a considerar o âmbito da escritura como algo superior e seguro, de tal maneira que a emergência da loucura, que aqui aparece sigilosamente, assusta mais”. Há que se entender aí a surpresa do moço: corria o ano de 1928 e as vanguardas artísticas ainda buscavam na loucura um modo de expressar a criatividade nunca compreendida.

Neste caso, parece claro que as idéias libertárias de Benjamin se chocam com as de Michel Foucault. Em sua História da Loucura, o intelectual francês tem um enunciado que é claro ao relacionar a loucura à ausência e à impossibilidade da obra. É óbvio que uma declaração destas não passa incólume à fúria dos pós-modernos, loucos para legitimar a loucura como arte.

A loucura é sempre tema ou personagem. A loucura não faz literatura. Como personagem, a loucura é fértil. Deu-nos de Dom Quixote a Policarpo Quaresma, passando por Hamlet e Quincas Borba. Como tema, ela sempre é alegoria, símbolo de algo que o autor nos quis revelar. No caso do longo ensaio de Luzia de Maria sobre o assunto, Sortilégios do Avesso (Escrituras), a loucura é expressão da tirania.

O assunto tomou conta de Luzia de Maria como um surto, durante uma aula com Silviano Santiago. A partir daí, ela começou a perceber que várias obras de seu escritor predileto, Machado de Assis, envolviam a loucura. Bingo. Nascia uma tese de mestrado.
A autora, porém, ignora sem cerimônia a questão arquetípica da loucura – o que é uma pena. Em seu trabalho de 360 páginas, Luzia de Maria começa por traçar um panorama da loucura através dos séculos, desde a Antigüidade Clássica. Há, neste momento, certa confusão entre a loucura e os “estados alterados da mente”. Tudo parece ser a mesma coisa na imprecisão de um tempo em que a medicina e a filosofia se misturavam. Assim, Luzia de Maria consegue juntar delírio e profecia sob a alcunha de loucura.

Fica claro, porém, que o Romantismo é o auge da loucura enquanto tema. Até porque os amantes deliram infinitamente. E também os românticos tinham certo pendor para visões tenebrosas de espíritos e demônios. Paradoxalmente, a literatura louca de Álvares de Azevedo, por exemplo, era feita sob parâmetros muito lógicos de uma arte que procurava traduzir em beleza aquilo que muitas vezes é delírio. A loucura do Romantismo é, portanto, abrandada pela sua finalidade que muitos não consideram nobre: a beleza.

Freud, aliás, parece ter sido o grande “amenizador” da loucura literária. A difusão dos estudos do psicanalista trouxe uma maior compreensão sobre o tema. O reflexo disso está em obras mais modernas, como a de Autran Dourado, na qual a loucura reside sem o folclore de outrora. “É uma loucura mais condizente com o que o personagem louco é. Ele tem a inteligência perfeitamente coesa, mas em certo ponto começa a ter delírios”, diz.
Por outro lado, a literatura contemporânea incorporou outro tipo de loucura. Induzidos por todos os tipos de alucinógenos possíveis, os escritores passaram a fazer uma literatura que se enquadra perfeitamente na idéia de Foucault de que a loucura só é capaz de produzir a não-obra. Luzia de Maria, porém, passa ao largo destas preocupações. “Não me detive sobre a literatura contemporânea”, diz. É pena. Porque se a loucura foi usada, em determinado momento, para se fazer uma crítica à sociedade, hoje ela aparece perfeitamente agregada à literatura de aceitação. A loucura – quem diria? – se tornou a coisa mais normal do mundo.

quarta-feira, 29 de abril de 2009

Poema dos Loucos

Era meia noite, quando o sol brilhava no horizonte.
Um negro careca,com seus lindos cabelos louros, sentado num banco de madeira,feito de pedra, contemplava a beleza da natureza. Ao seu lado havia um cego que lia um jornal sem letras, enquanto olhava sua plantaçao de bacalhau. Bem na frente a sua retaguarda, voava a toda velocidade um grandioso jacaré, enquanto um volumoso elefante repousava à sombra de um pé-de-alface.
Um homem nu, mal vestido, segurando um ferro de borracha calado dizia: "prefiro morrer do que perder a vida". Ali perto, bem longe, havia um bosque onde as vacas pulavam de galho-em-galho, os pássaros pastavam alegremente, os elefantes rosas voavam. Existia um mudo que dizia: "a terra é uma esfera quadrada que gira parada em torno da lua e que navega num navio sem fundo, sobre as ondas de um poco sem águas". E tudo isso graças ao átomo de carbono, que fez a fotossintese dos verbos, que fez também a hibridizaçao dos logaritmos e a grande epidemia de malaria que atacou toda a tropa do barco de Cristovao Colombo no dia da descoberta do Brasil.