quinta-feira, 30 de abril de 2009

Música e loucura

Os compositores, em geral, concordam quanto à presença, em seus processos mentais, de um elemento irredutível – a inspiração – que, junto a todo um complicado trabalho de construção racional, constitui a essência do processo criativo.
A inspiração resulta, na prática, naquilo que poderíamos bem chamar de “coisa dada” ao compositor, em contra-distinção a tudo aquilo que ele irá acrescentar para obter a peça musical acabada. A inspiração fornece uma espécie de “semente” – um motivo musical, um tema –, em que o compositor baseia todo o restante de seu trabalho.

O fato importante a destacar, aqui, é que essa “coisa dada” não chega ao compositor pela via racional . É algo mais ligado ao instinto, aos sentimentos, que brotam das entranhas da alma – ali onde residem as grandes paixões e onde o gênio faz a sua morada. Não sendo racionais, a melodia de uma peça e sua inesperada seqüência harmônica são, em última análise, inexplicáveis.

Quando J. S. Bach reduziu o papel da inspiração na arte da composição ao da perspiração, na verdade o fez enunciando uma das mais espetaculares mentiras jamais ditas por um cristão temente a Deus: “– Trabalhe tanto quanto eu, e você comporá tão bem quanto eu”... Mozart foi mais sincero: “ – Quando eu sou completamente eu mesmo, inteiramente a sós, e de bom humor (...), é nesses momentos que minhas idéias fluem com mais facilidade e abundância. De onde elas vêm, ou como elas vêm, eu não sei; tampouco posso forçar que elas cheguem”.

Nenhum outro período histórico ilustra tão bem o milagre da inspiração, não só na música, mas em todas as artes, quanto o Romantismo, na transição do século 18 para o 19. Esse movimento notável de idéias, entretanto, começa a surgir na Inglaterra já em meados do século 17, inicialmente como mero termo para indicar o fabuloso, o extravagante, o fantástico e o irreal. Daí por diante, “romântico” passa cada vez mais a indicar o renascimento do instinto e da emoção, que o racionalismo do Iluminismo não havia conseguido abafar inteiramente. O ethos do homem romântico pode ser assim resumido: sentimento e emoção que se afirmam acima da razão, conflito interior, dilaceração de um ego que nunca se sente satisfeito, busca interminável de “algo mais” que lhe escapa continuamente, impressionabilidade permanente, inquietude, saudade irremediável e ânsia de retorno a uma felicidade utópica. Além disso, o Romantismo – principalmente em música – é triste. A música dos compositores românticos, de Schubert a Berlioz, passando por Beethoven, Chopin, Liszt, Schumann, Weber, Brahms, Wagner, Mendelssohn e os compositores das chamadas escolas nacionais (onde não podemos deixar de lembrar a figura extraordinária de Tchaikovsky), pois bem, essa música exprime, acima de tudo, a paixão dolorosa, a fantasia (em contraste com a “fria razão”), não raro também o desespero.
Esse furor poeticus marca quase toda a expressão musical do Romantismo. Essa foi uma era assombrada pela identificação do lunático ao amante, ao poeta, que terminou por produzir uma estética capaz de abrigar, enquanto disciplina filosófica autônoma, elementos irracionais e sobrenaturais. O Romantismo considerava o gênio como algo afim com a loucura.

No seu belíssimo “Quarteto em Dó Menor, Opus 60”, com piano, Brahms confidencia a seu editor: “– Imagine um homem que tudo perdeu e que decide se matar...”. Infeliz com seu amor impossível por Clara Schumann, Brahms manda as instruções para a publicação do Quarteto: “Na capa você deve colocar a figura de um homem com um paletó azul, colete amarelo... e uma pistola apontada para a cabeça. Agora sim, você vai poder fazer idéia da música! Para essa ilustração lhe enviarei minha fotografia...”. Compreende-se: essa era uma época em que as pessoas liam o Werther de Goethe e, inebriadas com o espírito do Romantismo, decidiam tirar a própria vida.

Felizmente, o “suicídio” de Brahms não passou das notas do seu Quarteto – uma das mais belas páginas da literatura musical de câmara de todos os tempos.

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