quinta-feira, 30 de abril de 2009

É preciso inventar novas armas

Desde seus primórdios, o capitalismo manteve na miséria dois terços da população mundial. Mas, com a automatização das fábricas e o advento das tendências virtualizantes, e com o atual deslocamento do foco para as finanças, os serviços, o marketing e o consumo, essa porcentagem de “excluídos” está aumentando perigosamente. São poucos aqueles que podem se submeter à vertigem da flexibilidade e da reciclagem constante, a fim de satisfazer as demandas da competitividade, colocando no mercado de trabalho os atributos igualmente “virtuais”, etéreos e imateriais que hoje são solicitados: criatividade, inteligência, conhecimento, habilidades comunicativas e informação.

É irreversível a compatibilidade entre homens e computadores, isto é, a mutua impregnação pela lógica digital através do convívio com os aparelhos e com as metáforas que os atravessam. Isso já está ocorrendo no presente. Mas se trata de uma construção histórica e, como tal, pode mudar. Ou seja, não se trata de um fato “natural”, de uma “conseqüência inevitável do progresso”, mas de uma construção que responde a um projeto sócio-político e econômico determinado. Eu, particularmente, sinto um desconforto profundo com relação ao papel que o mercado assumiu em nossas vidas, e concordo com Gilles Deleuze quando ele diz que a nossa sociedade sofreu uma mutação nas últimas décadas, e que não cabe temer ou esperar: é preciso inventar novas armas.

A Internet está gerando novas dinâmicas na afetividade e na sexualidade, já que cada vez mais pessoas se relacionam virtualmente, e acredito que é possível estabelecer verdadeiros laços afetivos, ou de desejo, pela Internet, pois a sexualidade humana é múltipla, e suas manifestações variam historicamente, mas o fenômeno é inquietante. Eu não considero que o cyberespaço seja um universo separado do mundo real. Pelo contrário, trata-se de um fenômeno perfeitamente “real”, que faz parte de nosso mundo e está afetando fortemente nossas subjetividades, nossas cosmovisões e nossos modos de ser. As práticas desenvolvidas nos ambientes digitais estão influenciando as condutas sexuais e o imaginário erótico, mas este é um fenômeno muito recente, cuja popularização começou há menos de uma década.

O fato de a reprodução não ser o único objetivo do sexo ficou evidente pelo menos desde a invenção da pílula anticoncepcional. É verdade que as técnicas de clonagem vão mais fundo nesse sentido, pois tornam desnecessária a participação masculina na concepção de um novo ser. Isso é inquietante. As condutas sexuais e o imaginário erótico estão atravessando fortes transformações, com certeza afetados pelas descobertas e invenções tecnocientíficas, tanto no campo teleinformático como no das ciências da vida, mas também em virtude das mudanças sociais e políticas que estamos vivenciando.

Parece sobrar cada vez menos espaço para a reflexão moral num cenário dominado pela ciência e pela tecnologia.
Os avanços tecnocientíficos são tantos e tão velozes que as nossas ferramentas para compreendê-los e avaliá-los costumam ser insuficientes, pois também elas estão submetidas ao turbilhão da obsolescência e ao imperativo da reciclagem constante. Acredito que aí resida a origem do despertar da bioética e do biodireito nos últimos anos em todo o planeta, com os debates e questionamentos que decorrem da proliferação de fenômenos inquietantes surgidos dos laboratórios. As propostas de estabelecer proibições e estipular o cumprimento de códigos internacionais, porém, não parecem adequadas à dinâmica da nova tecnociência aliada ao mercado global, e, acredito, a eficácia dessas iniciativas será escassa.

Seria possível fazer um download da criatividade? No fim das contas, este resíduo não redutível a “zeros” e “uns” não seria o que existe de mais essencialmente humano?
A arte, assim como a ciência e a filosofia, tem um papel fundamental: ela deve ousar. Rasgar o véu do senso comum e das verdades estabelecidas para ir além do que já se sabe, atrever-se a pintar e a pensar o que ainda não foi pensado, ou pintado. A capacidade de criar é um patrimônio valiosíssimo do gênero humano, inclusive daqueles integrantes da espécie que começam a se pensar como pós-orgânicos e como compatíveis com os aparelhos e com a lógica digital. Eu confio plenamente nessa capacidade, admiro essa potência da vida e procuro estar sempre atenta às suas reverberações.

Apesar da minha visão crítica com relação a todos os processos emancipadores , vejo forças positivas no desabamento de velhas formas de dominação e outras cristalizações de poder, que estão se desfazendo. Além disso, confio muito na potência criadora dos homens, inclusive dos “pós-orgânicos”, e acredito que os momentos de transição como este são férteis, pois permitem enxergar as inovações sobre o pano de fundo daquilo que vai ficando para trás. Discutir essas questões já é valioso, pois só entendendo aquilo em que estamos nos tornando poderemos definir aquilo em que queremos nos tornar.

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