quinta-feira, 30 de abril de 2009

Teatro e loucura

Embora nascido do êxtase e do entusiasmo suscitados por primitivos rituais de vida e de morte, é com a ascensão do logos, no apogeu da Grécia clássica, que o teatro vai ganhar autonomia, instituindo-se como uma forma consciente de expressão artística. Desde então, credenciado sobretudo como uma arte da palavra, o teatro ocidental tem habitado prioritariamente os domínios da racionalidade. No entanto, pela essencialidade de seu caráter ritualístico, o fenômeno teatral jamais se desvencilhou de suas forças ancestrais, nem sempre submissas à lógica e ao intelecto. Ou seja, de algum modo, a arte de representar parece trazer em sua própria natureza a instigante tensão entre a razão e o seu outro – algo desconhecido, muitas vezes rotulado como loucura.

Todavia, a despeito de seus componentes irracionais, o teatro raramente concedeu o privilégio da representação aos indivíduos que na vida real são tidos como loucos. Isso não impediu que a loucura se tornasse uma temática teatral recorrente, embora sendo quase sempre representada, de forma mais ou menos caricatural, por pessoas consideradas normais. Há inúmeros loucos famosos na dramaturgia ocidental. Porém, a rigor, esses personagens que despertam tanta curiosidade das platéias não guardam muitas semelhanças com os seres humanos depositados em hospícios, ignorados pela maioria, controlados por grades ou por drogas, quase incomunicáveis.

De fato, a representação da loucura que vitima os pacientes psiquiátricos, a insanidade passível de diagnóstico científico, desglamurizada pelo habitual isolamento do doente, tem significado um grande desafio para o teatro – não somente para os atores, mas também para os diretores, e sobretudo para os dramaturgos. Estigmatizada no imaginário ocidental como um estado irreversível, a doença mental grave parece negar ao drama o seu componente mais importante: a ação desenvolvida por motivações subjetivas. Talvez por isso, através dos séculos, percebe-se que ao teatro, tanto à tragédia como à comédia, interessou menos a enfermidade psíquica propriamente dita, e, sim, o tornar-se louco, o fingir-se de louco, ou ainda, especialmente, o manter-se nos limiares da loucura.

Ora aparecendo como castigo por atos maléficos, ora como resultado da maldade alheia, ou ainda utilizada como artifício para obtenção de vantagens ou como subterfúgio para escapar de apuros, as formas de loucura que rendem melhor resultado dramático não necessariamente obedecem às descrições dos manuais de psicopatologia. Assiste-se com enorme assombro, por exemplo, à decadência mental de uma Lady Macbeth; mas que interesse teria essa personagem, se desde o início da peça ela já se apresentasse em agudo quadro de delírios e alucinações? Em Hamlet, por sua vez, em mais um lance de grande força cênica, o angustiado príncipe da Dinamarca, com seus teatrais métodos de vingança, deixa-se passar por louco, levando ao suicídio sua amada Ofélia.

O cômico, também, desde da antiguidade clássica, sem maiores compromissos com a representação de uma loucura verídica, produziu uma vasta galeria de hilariantes quase-loucos – excêntricos, lunáticos, maníacos e dementes. Esses tipos, criados e recriados por diversos autores e atores, ganhariam maior profundidade com a genialidade de Molière. Se Orgon fosse efetivamente louco, não haveria “O Tartufo”; mas se ele fosse um sujeito equilibrado, também não. Do mesmo modo, quase todos os demais tragicômicos protagonistas das peças de Molière parecem se encontrar a um passo da loucura, mas se mantêm obstinadamente no mundo das pessoas sãs.

O teatro voltado para o riso também engendrou a enigmática figura do bobo, o falso-louco por excelência. Bufão, pícaro, gracioso ou clown, a designação pode mudar, mas sua essência permanece a mesma: por ser marginalizado, como os loucos, ele tem a liberdade de dizer o que bem entende, sendo ouvido ou ignorado conforme os interesses de cada situação.

A loucura como ela é – Algumas vezes, porém, o teatro pôde estabelecer um contato mais aproximado com a realidade da doença mental, por intermédio do sofrimento particular de alguns criadores. No Brasil, entre outros casos, destaca-se o autor gaúcho José Joaquim de Campos Leão, conhecido como Qorpo-Santo (1829-83), que chegou a ser formalmente declarado incapaz, por manifestar distúrbios mentais. Algumas de suas peças, redescobertas a partir da década de 1960, como Eu Sou Vida; Eu Não Sou Morte ou Mateus e Mateusa, viriam a ser comparadas a certos experimentos do teatro moderno, em especial ao chamado teatro do absurdo – rótulo associado ao trabalho de autores como Samuel Beckett, Eugène Ionesco, Edward Albee e o atual ganhador do Prêmio Nobel de Literatura, Harold Pinter, todos interessados em interpelar, por meio da linguagem, os limites da comunicação humana.

No Recife, a Cia. Teatro de Seraphim, cujo próprio nome foi inspirado pelos escritos teóricos de Artaud, tem se detido com especial atenção sobre a problemática da loucura.
Sempre sob a direção do professor Antônio Cadengue, em 1996, esse grupo levou aos palcos uma versão de “O Alienista”, de Machado de Assis. Nos dois anos seguintes, participou ativamente do Ciclo Iluminuras, importante experiência de aproximação entre o doente mental e a sociedade por meio da arte – iniciativa liderada pelo cantor Gonzaga Leal, quando atuava como terapeuta no Hospital Ulisses Pernambucano. Uma das peças encenadas pela Seraphim, nesse projeto, foi “Lima Barreto ao Terceiro Dia”, de Luís Alberto de Abreu, texto que reconstrói poeticamente o convívio do autor de “Triste Fim de Policarpo Quaresma” com os internos do manicômio a que foi recolhido por ser alcoólatra e por se encontrar em profundo estado de depressão.

Apesar de não ter corrido o risco de ser internado em hospícios, como ocorreu com Lima Barreto, embora também hostilizado por setores mais conservadores da sociedade, sendo freqüentemente tachado de pornográfico e de pervertido, caberia a Nelson Rodrigues produzir uma das melhores ilustrações das dificuldades de se representar teatralmente, em sua devida complexidade, as dores da enfermidade psíquica. Captando com precisão a atávica marginalidade do doente mental, em “Álbum de Família”, Nelson concebe o personagem Nonô, “o possesso”, um jovem atormentado que perambula nu ao redor da casa, causando vergonha aos seus familiares. Nonô não tem voz, não possui falas, nem sequer precisa aparecer em cena, mas a sua presença – que é ao mesmo tempo a sua ausência – é lembrada durante toda a narrativa, por exclusão ou por negação. De certa maneira, esse recurso encontrado pelo maior dramaturgo brasileiro parece sintetizar metaforicamente a maior contribuição que o teatro talvez possa legar à questão da doença mental: a evidência, ou a confirmação, de que a verdadeira loucura é, em última instância, um doloroso impedimento à representação.

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