quinta-feira, 30 de abril de 2009

Literatura e loucura

Loucura sempre fascinou escritores e poetas. Não é à toa. O louco, antes de ser um caso para psiquiatras, representa no imaginário universal o homem em todas as suas possibilidades. É um arquétipo (e não um estereótipo, por favor) do exagero e das escolhas e suas conseqüências. Por isso mesmo são infinitos os textos que usam o louco, em suas mais diversas manifestações, como personagem. Donde se pode deduzir que, em literatura, o superego atrapalha um pouco.

É interessante perceber que, ao contrário das artes plásticas, do teatro e da música, a literatura não permite que o louco seja ativo na criação. Claro que há exceções, mas elas não passam disso. Jamais um escritor diagnosticado como louco será canônico, ainda que a academia adore se debruçar, vez ou outra, sobre os delírios do dramaturgo gaúcho e louco de pedra Qorpo Santo.

A marginalidade em que vivem na literatura os escritores doidos varridos é motivo de crítica para Walter Benjamin: “A existência deste tipo de obras tem algo de surpreendente. Estamos habituados, apesar de tudo, a considerar o âmbito da escritura como algo superior e seguro, de tal maneira que a emergência da loucura, que aqui aparece sigilosamente, assusta mais”. Há que se entender aí a surpresa do moço: corria o ano de 1928 e as vanguardas artísticas ainda buscavam na loucura um modo de expressar a criatividade nunca compreendida.

Neste caso, parece claro que as idéias libertárias de Benjamin se chocam com as de Michel Foucault. Em sua História da Loucura, o intelectual francês tem um enunciado que é claro ao relacionar a loucura à ausência e à impossibilidade da obra. É óbvio que uma declaração destas não passa incólume à fúria dos pós-modernos, loucos para legitimar a loucura como arte.

A loucura é sempre tema ou personagem. A loucura não faz literatura. Como personagem, a loucura é fértil. Deu-nos de Dom Quixote a Policarpo Quaresma, passando por Hamlet e Quincas Borba. Como tema, ela sempre é alegoria, símbolo de algo que o autor nos quis revelar. No caso do longo ensaio de Luzia de Maria sobre o assunto, Sortilégios do Avesso (Escrituras), a loucura é expressão da tirania.

O assunto tomou conta de Luzia de Maria como um surto, durante uma aula com Silviano Santiago. A partir daí, ela começou a perceber que várias obras de seu escritor predileto, Machado de Assis, envolviam a loucura. Bingo. Nascia uma tese de mestrado.
A autora, porém, ignora sem cerimônia a questão arquetípica da loucura – o que é uma pena. Em seu trabalho de 360 páginas, Luzia de Maria começa por traçar um panorama da loucura através dos séculos, desde a Antigüidade Clássica. Há, neste momento, certa confusão entre a loucura e os “estados alterados da mente”. Tudo parece ser a mesma coisa na imprecisão de um tempo em que a medicina e a filosofia se misturavam. Assim, Luzia de Maria consegue juntar delírio e profecia sob a alcunha de loucura.

Fica claro, porém, que o Romantismo é o auge da loucura enquanto tema. Até porque os amantes deliram infinitamente. E também os românticos tinham certo pendor para visões tenebrosas de espíritos e demônios. Paradoxalmente, a literatura louca de Álvares de Azevedo, por exemplo, era feita sob parâmetros muito lógicos de uma arte que procurava traduzir em beleza aquilo que muitas vezes é delírio. A loucura do Romantismo é, portanto, abrandada pela sua finalidade que muitos não consideram nobre: a beleza.

Freud, aliás, parece ter sido o grande “amenizador” da loucura literária. A difusão dos estudos do psicanalista trouxe uma maior compreensão sobre o tema. O reflexo disso está em obras mais modernas, como a de Autran Dourado, na qual a loucura reside sem o folclore de outrora. “É uma loucura mais condizente com o que o personagem louco é. Ele tem a inteligência perfeitamente coesa, mas em certo ponto começa a ter delírios”, diz.
Por outro lado, a literatura contemporânea incorporou outro tipo de loucura. Induzidos por todos os tipos de alucinógenos possíveis, os escritores passaram a fazer uma literatura que se enquadra perfeitamente na idéia de Foucault de que a loucura só é capaz de produzir a não-obra. Luzia de Maria, porém, passa ao largo destas preocupações. “Não me detive sobre a literatura contemporânea”, diz. É pena. Porque se a loucura foi usada, em determinado momento, para se fazer uma crítica à sociedade, hoje ela aparece perfeitamente agregada à literatura de aceitação. A loucura – quem diria? – se tornou a coisa mais normal do mundo.

Nenhum comentário: